Pt:Entrevista com Universidade Federal
- Desastres e gestão pública: entrevista com a Profa. Dra. Telma Mendes da Silva, do Programa de Pós-graduação em Geografia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
- Por Dra. Raquel Dezidério Souto(*)
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Telma Mendes da Silva é doutora em geografia e, atualmente, professora aposentada da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Geografia - PPGG-IGEO. Tem experiência na área de geociências, com ênfase em geomorfologia, atuando principalmente nos seguintes temas: evolução do relevo e de bacias de drenagem, mapeamentos geomorfológicos, geomorfologia do Quaternário e tectônica, geomorfologia e ensino. Telma concedeu gentilmente uma entrevista ao YouthMappers UFRJ, em comemoração pelos seus dois anos de funciona mento, sobre alguns aspectos relacionados à gestão voltada à redução de riscos e desastres no Brasil.
🎉 YouthMappers UFRJ - Os resultados no artigo How far have we come? Review of main public policies to reduce landslide impacts in Brazil [1], que você escreveu em 2024, com Bianca Carvalho Vieira e outros, mostram que, até 1980, não havia uma organização compreensiva da defesa civil no Brasil. Na sua visão, o que contribuiu para que esta temática fosse considerada seriamente tão tarde?
Telma - Principalmente, a inexistência, em órgãos federais, estaduais e municipais, de secretarias/ setores que fossem responsáveis pelo estudo, prevenção e ação, quando da ocorrência de eventos de degradação ambiental, tais como episódios de movimentos de massa, enchentes e inundações, incêndios em diversos de nossos biomas etc. Enfim, não havia uma organização de políticas voltadas à amenização dos efeitos catastróficos, que os eventos extremos poderiam causar às populações e em ambientes naturais distintos. Só mesmo com a intensidade e a frequência das ocorrências dos eventos, que causavam muitas perdas socioeconômicas e de vidas, é que se iniciou o processo de criação e fortalecimento de distintos níveis/ setores da Defesa Civil.
Hoje em dia existe um setor forte e organizado da Defesa Civil[2] que atua de forma contínua e permanente, demandando competências institucionais de todos os órgãos públicos e privados, bem como de ampla participação da comunidade. Sendo a organização da Defesa Civil em forma de sistemas locais, em cada ente da federação.
🎉 YouthMappers UFRJ - Já o artigo ANTROPOCENO: “NOVO” PARADIGMA DA CIÊNCIA?[3], publicado em 2022, pela Revista Casa da Geografia de Sobral, cita a passagem de Goudie (2017), de que os mecanismos de feedback dos sistemas não são considerados geralmente, quando da adoção das abordagens sistêmicas (p. 588). No seu entendimento, quais as consequências disso? E qual(is) seria(m) a(s) via(s) para fomentar a adoção de uma visão mais orgânica nas abordagens ambientais (ou socioambientais)?
Telma - A abordagem sistêmica, como o próprio nome diz, é uma leitura em que se deve priorizar uma análise/ visão como um todo, ou seja, bem abrangente do sistema estudado ou a ser estudado (avaliando-se desde as entradas de energia no sistema até a saída/respostas que o sistema teve a um determinado input de energia) e, por muitas razões, os pesquisadores deixam de lado as investigações tanto das respostas que o sistema ou parte dele deram como falta a compreensão de como os sistemas se retroalimentam (feedback) e isso é de fundamental importância para se ter compreensão de como ocorrem as mudanças ao longo do tempo no determinado sistema/subsistema estudado.
Atualmente a agência humana é responsável por muitas das transformações que ocorrem desde a nível local como mundial e, cada vez mais, é importante ter em mente como poderá ser a retroalimentação de cada mudança ocorrida. Até mesmo como avaliação de mudanças futuras.
- 🎉 YouthMappers UFRJ - Os episódios recentes de desastres ocorridos em estados com relevo muito escarpado, como o Rio Grande do Sul ou o Rio de Janeiro, mostraram que boa parte das defesas civis no Brasil não está preparada para a incidência de eventos catastróficos, denominados eventos extremos. De acordo com a sua larga experiência de pesquisa e de diálogo com diversos setores (acadêmico, público, privado), quais seriam os grandes entraves para o desenvolvimento desta capacidade de resposta no nosso país?
Telma - Infelizmente, a “desarrumação” das instituições que tratam do ambiente... elas foram muito sucateadas nos últimos anos e isso, se refletiu principalmente no que vimos no caso do Rio Grande do Sul. Temos um exemplo claro nesse episódio, onde o governo estadual e, principalmente, o da prefeitura municipal de Porto Alegre, tiveram grande responsabilidade por demitir técnicos e especialistas de setores ambientais do governo, ignorando os riscos que os municípios corriam, em relação à inadequabilidade dos sistemas de controle de cheias do lago Guaíba. Mas também o setor agrícola teve sua enorme participação, pois, ao longo dos anos, todas as áreas alagadiças e arredores foram ocupadas pela produção. Áreas estas, que nunca deveriam ter sido ocupadas, sem o controle e a definição das áreas de risco e, principalmente, sem os órgãos de planejamento se aterem à questão de que grande parte do RS está na base das escarpas do Planalto Meridional e que essas são áreas naturalmente alagáveis. Os banhados, como são denominadas pelos gaúchos, já dizem, por si só, o que representam/ caracterizam: áreas de declives muito baixos e banhadas pelas águas que descem das escarpas.
O caso do RS foi só um exemplo que procurei comentar sobre o quão é importante ter setores técnicos, com diversos especialistas que deem conta de investigar as condições de fragilidades físico-ambientais e também a sua interação com formas de uso e ocupação, a nível da escala local, sem, no entanto, entender o contexto regional em que determinada área se insere.
É importantíssimo que se conheça muito bem os pontos positivos e negativos do terreno, de modo a ter bases técnicas para adequação do uso. E, ao meu ver, o que mais falta nas diversas esferas de governo são corpos técnicos, que realmente estejam empenhados na avaliação e fiscalização do uso adequado; priorizando o bem estar da população e a conservação dos ambientes naturais. É possível! No entanto, a rede de corrupção e de busca pela geração de lucro, em distintos níveis de governabilidade, acabam impedindo que haja um mundo melhor. Temos que respeitar a natureza, em prol de dias melhores. E esse respeito deve ser dado em todas as esferas, desde àquelas que estão no poder, como a população e também o setor privado; pois todos necessitam que o ambiente esteja bem para que se possamos viver em condições dignas.
Atualmente, o nível de alteração no ambiente tem se mostrado inaceitável e a natureza vem dando respostas, se retroalimentando, em níveis tão elevados quanto o das alterações que têm ocorrido. Vivemos em um sistema de processos e respostas.
- 🎉 YouthMappers UFRJ - Como você vê a iniciativa brasileira de fomento à criação dos Planos Municipais de Redução de Risco? Eles se diferenciam dos principais planos, projetos ou programas mais antigos do Governo Federal?
Telma - Os Planos Municipais são extremamente necessários a situações de risco. Tem que se ter muito conhecimento sobre o lugar, assim como políticas de prevenção e, também, políticas de ação quando da ocorrência dos eventos. Atualmente, a Defesa Civil tem agido nesse sentido, desde planos, projetos e programas ao nível nacional até aqueles ao nível municipal:
A Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil é o órgão central, sendo responsável pela coordenação do Sistema Nacional, bem como pela articulação com os órgãos e as entidades federais, para a execução das ações de gerenciamento de riscos e de desastres no âmbito do Sistema Federal de Proteção e Defesa Civil. Os órgãos estaduais e do Distrito Federal são responsáveis pela articulação e coordenação do Sistema Estadual e Distrital de Proteção e Defesa Civil. Nos municípios, os órgãos municipais de proteção e defesa civil são responsáveis pela articulação e coordenação do Sistema Municipal de Proteção e Defesa Civil.[2] (destaque nosso)
No entanto, não são todos os municípios que contam com uma Defesa Civil atuante. Tenho conhecimento do município de Angra dos Reis, RJ, onde está clara, a sua organização e importante atuação, especialmente, pelo trabalho que realizam conjuntamente com a população local. Já existe um programa bem organizado com setores de monitoramento meteorológico, contato com a população e ações emergenciais. Sendo o comando local municipal, diretamente articulado a nível estadual, e esse, a nível nacional. Acredito que esse deva ser o formato de atuação dos setores municipais.
- 🎉 YouthMappers UFRJ - Qual o papel da integração entre a Academia e a comunidade, externa às universidades e que participa de projetos de extensão universitária? O que este tipo de ação pode promover para avançarmos nas questões relativas à redução dos riscos e desastres e dos seus prejuízos humanos e materiais?
Telma - Acredito que uma contribuição salutar de projetos de extensão universitária seria aquela que trabalha diretamente com as comunidades de risco. Como em atividades que procurem informá-los das prováveis situações de maior risco, esclarecer as sobre medidas de segurança, os cuidados especiais no momento de risco, a necessidade de retirada do local, ou mostrar que é importante ter um kit de fuga, com coisas importantes de se levar, no caso de saída do local; enfim, uma série de informações à população, que venha a auxiliá-los em momentos tão difíceis. Além dessas atividades, realizadas diretamente com a população, acredito que uma outra vertente seria a possibilidade de ser voluntários em algumas prefeituras, a fim de auxiliar nos momentos de ação/ trabalho no pós-evento. Existe também, em muitos casos, a necessidade de se voluntariar para ajudar nos piores momentos de uma área de risco.
Como citar esta entrevista
(*) Desastres e gestão pública: entrevista com a Profa. Dra. Telma Mendes da Silva, do Programa de Pós-graduação em Geografia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Entrevistada: Telma Mendes da Silva. Entrevistadora: Raquel Dezidério Souto. Rio de Janeiro: IVIDES.org, GeoCart-UFRJ, 12 mar. 2025. Disponível em: https://wiki.openstreetmap.org/wiki/Pt:Entrevista_com_Universidade_Federal. DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.15015152
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Referências
[1] VIEIRA, B. C.; MARTINS, T. D.; SILVA, T. M. da; BONINI, J. E. How Far Have We Come? Review of Main Public Policies to Reduce Landslide Impacts in Brazil. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=4669317. J. Mt. Sci., v. 21, p. 2891–2904, 2024. DOI (artigo): https://doi.org/10.1007/s11629-024-8898-z || DOI (preprint): http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.4669317.
[2] https://www.gov.br/mdr/pt-br/assuntos/protecao-e-defesa-civil/defesa-civil/como-se-organiza
[3] SILVA, T. M. da; OLIVEIRA, C. C. E. ANTROPOCENO: “NOVO” PARADIGMA DA CIÊNCIA? Revista da Casa da Geografia de Sobral, Sobral/CE, v. 24, p. 585-606, 2022. Disponível em: https://rcgs.uvanet.br/index.php/RCGS/article/view/915. DOI: https://doi.org/10.35701/rcgs.v24.915.
[4] CV Lattes da Profa. Dra. Telma Mendes - http://lattes.cnpq.br/4010890086240743.